quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Sou Pina de mim mesmo? Protocolo.


 Glauber Gonçalves de Abreu

Uma citação para conversar com o título:

Bausch (...) parte de perguntas pessoais feitas a seus bailarinos. A partir de certo momento de sua trajetória, ela passa a iniciar uma nova obra a partir dessas questões. O resultado é a construção de cenas baseadas nos impulsos mais profundos, arquivados na memória corporal de seus bailarinos atores. (CALDEIRA, 2009: 28)

Parto de uma pergunta por achar apropriado ao que aprendemos sobre o processo criativo de Pina Bausch. Ser Pina de mim mesmo seria lançar-me perguntas que pudessem movimentar meus incômodos, anseios e expectativas na criação do meu cotidiano, da minha relação com a vida e com o mundo. Sou capaz disso? Não será já a vida um fluxo intuitivo de respostas a perguntas lançadas constantemente pela consciência – ou pela fuga dela? Sou capaz de editar minhas respostas, ouvi-las e transformá-las em espetáculos (de mim mesmo)?

Memória corporal: lembro-me de um episódio no ano 2000, aos 16 anos de idade, durante minha primeira oficina de iniciação ao teatro, em que o professor leva um vídeo para discutirmos em grupo. Nenhum nome ficou, nenhum título, nenhum diretor; apenas uma imagem: uma mulher, de pernas de fora, sentada em uma poltrona em meio ao trânsito de uma cidade. Discutimos a imagem e na necessidade afoita da narrativa, não hesitei: - Trata-se de uma prostituta. Uma colega da oficina, para meu desespero, contestou: - Acho que não! Acho que ela quis colocar aquela cadeira ali; quis ficar ali. E pensei: - Para quê? Essa imagem nunca me saiu da memória; retornou diversas vezes, como uma espécie de inspiração permanente, uma provocação ao pensamento despercebido, um interesse de espectador por uma imagem potente.

Isso dito, a experiência com Pina começa no jogo da citação cênica. Levamos, individualmente, um movimento ou sequência retirados de algum trabalho da artista que houvéssemos visto. Levei a coreografia das quatro estações (título que eu mesmo dei) aprendida no YouTube (mais um recurso didático interessante para o professor da educação básica):


Criamos, depois, movimentos autorais. Ao final, sob o olhar de um diretor-coreógrafo e em grupo, unimos partes de cada criação e improvisamos uma breve cena. Foi uma experiência reveladora. Estava enferrujado, há muito tempo sem aulas práticas, sem participar de um jogo cênico como jogador, e foi muito prazeroso retomar essa capacidade expressiva.

Continuando o módulo Pina Bausch, utilizamos novamente o vídeo como recurso didático. Começamos a abordar o percurso, o processo e os procedimentos da artista assistindo ao filme O Lamento da Imperatriz, dirigido por Pina em 1989. Uma estrutura fílmica-colagem na qual os bailarinos-atores realizam ações deslocadas de seu espaço ou de seu objetivo cotidiano. Em torno do oitavo minuto do filme voltei àquela oficina. Encontrei esse elo perdido que me unia intuitivamente à obra da Pina. A cena da mulher na poltrona estava lá.

FIGURA 1. Imagem do filme O Lamento da Imperatriz

Hoje, vejo que na minha resposta e na resposta da minha colega já propúnhamos discutir narrativa (e, logo, sua descontinuidade) e estranhamento. Essa própria característica descontínua do filme (que poderíamos chamar de pós-dramático), o deslocamento daquela ação e, especialmente, a desapropriação daquele espaço em que ela agora acontece constituem fatores que provocam o estranhamento, procedimento comum nos trabalhos de Pina Bausch. A relação com este procedimento me interessa de perto pois trabalho esse conceito em programas de mediação de espetáculos que desenvolvo em Brasília junto a estudantes da educação básica. Em geral, o estranhamento distancia esse tipo de espectador da obra, faz com que ele abandone o processo de fruição por não se sentir parte dele, ou dono dele, ou não reconhecer sua autonomia como criador, mesmo que sentado na poltrona. Procuro sensibilizar o olhar para o estranhamento e para o entendimento de que estranhar é dar partida a um outro tipo de experiência estética.

Neste sentido, notam-se vínculos muito fortes entre as proposições artísticas de Bausch e Brecht. Sua dança-teatro reedita, em outros corpos, o efeito de distanciamento proposto por Brecht na primeira metade do século XX, por meio do qual ele desejava movimentar a audiência. O estranhamento em Pina, assim como em Brecht, está atravessado – entre outras coisas – pela noção de exposição da ficção, característica comum também ao movimento da performance art, cuja influência na criação teatral contemporânea levou Josette Féral ao conceito de “teatro performativo”.

O módulo Pina Bausch aconteceu em um momento em que muito se fala sobre ela. O lançamento do filme Pina, de Win Wnders, e do documentário Sonhos em Movimento, de Anne Linsel e Rainer Hoffman. A redescoberta do Lamento – que está disponível integralmente para visualização no YouTube ( http://www.youtube.com/watch?v=P_pEirgUpPM ). Materiais muito consistentes para experiências didáticas. Pina continua uma inspiração permanente, agora mais consciente e mais presente. Ofereço, como última provocação, meu recorte individual do exercício cinematográfico que fizemos em homenagem/devoração ao Lamento da Imperatriz. Bom estar em cena. Fazer este filme. O olhar coletivo e o olhar individual.

Para ver o vídeo, clique aqui.


Referências

CALDEIRA, Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

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