Uma citação para conversar com o título:
Bausch (...) parte de perguntas pessoais feitas a seus bailarinos. A
partir de certo momento de sua trajetória, ela passa a iniciar uma nova obra a
partir dessas questões. O resultado é a construção de cenas baseadas nos
impulsos mais profundos, arquivados na memória corporal de seus bailarinos
atores. (CALDEIRA, 2009: 28)
Parto de uma pergunta por achar apropriado ao
que aprendemos sobre o processo criativo de Pina Bausch. Ser Pina de mim mesmo
seria lançar-me perguntas que pudessem movimentar meus incômodos, anseios e
expectativas na criação do meu cotidiano, da minha relação com a vida e com o
mundo. Sou capaz disso? Não será já a vida um fluxo intuitivo de respostas a
perguntas lançadas constantemente pela consciência – ou pela fuga dela? Sou
capaz de editar minhas respostas, ouvi-las e transformá-las em espetáculos (de
mim mesmo)?
Memória corporal: lembro-me de um episódio no
ano 2000, aos 16 anos de idade, durante minha primeira oficina de iniciação ao
teatro, em que o professor leva um vídeo para discutirmos em grupo. Nenhum nome
ficou, nenhum título, nenhum diretor; apenas uma imagem: uma mulher, de pernas
de fora, sentada em uma poltrona em meio ao trânsito de uma cidade. Discutimos
a imagem e na necessidade afoita da narrativa, não hesitei: - Trata-se de uma
prostituta. Uma colega da oficina, para meu desespero, contestou: - Acho que
não! Acho que ela quis colocar aquela cadeira ali; quis ficar ali. E pensei: -
Para quê? Essa imagem nunca me saiu da memória; retornou diversas vezes, como
uma espécie de inspiração permanente, uma provocação ao pensamento
despercebido, um interesse de espectador por uma imagem potente.
Isso dito, a experiência com Pina começa no
jogo da citação cênica. Levamos, individualmente, um movimento ou sequência
retirados de algum trabalho da artista que houvéssemos visto. Levei a
coreografia das quatro estações (título que eu mesmo dei) aprendida no YouTube
(mais um recurso didático interessante para o professor da educação básica):
Criamos, depois, movimentos autorais. Ao final, sob o olhar de um
diretor-coreógrafo e em grupo, unimos partes de cada criação e improvisamos uma
breve cena. Foi uma experiência reveladora. Estava enferrujado, há muito tempo
sem aulas práticas, sem participar de um jogo cênico como jogador, e foi muito
prazeroso retomar essa capacidade expressiva.
Continuando o módulo Pina Bausch, utilizamos novamente o
vídeo como recurso didático. Começamos a abordar o percurso, o processo e os procedimentos da
artista assistindo ao filme O Lamento da
Imperatriz, dirigido por Pina em 1989. Uma estrutura fílmica-colagem na
qual os bailarinos-atores realizam ações deslocadas de seu espaço ou de seu
objetivo cotidiano. Em torno do oitavo
minuto do filme voltei àquela oficina. Encontrei esse elo perdido que me
unia intuitivamente à obra da Pina. A cena da mulher na poltrona estava lá.
FIGURA 1. Imagem do filme O Lamento da Imperatriz |
Hoje, vejo que na minha resposta e na resposta
da minha colega já propúnhamos discutir narrativa (e, logo, sua
descontinuidade) e estranhamento. Essa própria característica descontínua do
filme (que poderíamos chamar de pós-dramático), o deslocamento daquela ação e,
especialmente, a desapropriação daquele espaço em que ela agora acontece
constituem fatores que provocam o estranhamento, procedimento comum nos
trabalhos de Pina Bausch. A relação com este procedimento me interessa de perto
pois trabalho esse conceito em programas de mediação de espetáculos que
desenvolvo em Brasília junto a estudantes da educação básica. Em geral, o
estranhamento distancia esse tipo de espectador da obra, faz com que ele
abandone o processo de fruição por não se sentir parte dele, ou dono dele, ou
não reconhecer sua autonomia como criador, mesmo que sentado na poltrona. Procuro
sensibilizar o olhar para o estranhamento e para o entendimento de que
estranhar é dar partida a um outro tipo de experiência estética.
Neste sentido, notam-se vínculos muito fortes
entre as proposições artísticas de Bausch e Brecht. Sua dança-teatro reedita,
em outros corpos, o efeito de distanciamento proposto por Brecht na primeira
metade do século XX, por meio do qual ele desejava movimentar a audiência. O
estranhamento em Pina, assim como em Brecht, está atravessado – entre outras
coisas – pela noção de exposição da ficção, característica comum também ao
movimento da performance art, cuja
influência na criação teatral contemporânea levou Josette Féral ao conceito de
“teatro performativo”.
O módulo Pina Bausch aconteceu em um momento em
que muito se fala sobre ela. O lançamento do filme Pina, de Win Wnders, e do
documentário Sonhos em Movimento, de Anne Linsel e Rainer Hoffman. A redescoberta do Lamento
– que está disponível integralmente para visualização no YouTube ( http://www.youtube.com/watch?v=P_pEirgUpPM ).
Materiais muito consistentes para experiências didáticas. Pina continua uma
inspiração permanente, agora mais consciente e mais presente. Ofereço, como
última provocação, meu recorte individual do exercício cinematográfico que
fizemos em homenagem/devoração ao Lamento
da Imperatriz. Bom estar em cena. Fazer este filme. O olhar coletivo e o
olhar individual.
Para ver o vídeo, clique aqui.
Referências
CALDEIRA,
Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz:
a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume,
2009.
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