Protocolo Pina Bausch
Nome: Laila
Padovan
Disciplina:
Encenações em Jogo
“A solidão, a perda, a falta de
horizonte é incontestável. Lá está a mulher, a Imperatriz do universo,
apresentada em sua forma final: só. E sozinha permanece esse lamento infinito de
dor. Meio solta no ar, nesse metro quadrado do vagão do teleférico, bêbada,
alucinada, feita de lembranças, de fragmentos, a figura em decadência de uma
mulher, moldada em amor e dor, na busca eterna da felicidade.” (CALDEIRA,
2009, p.12)
A imersão em Pina Bausch foi
instigante para mim especialmente em relação ao filme “O Lamento da
Imperatriz”, pois revelou-me características e facetas da Pina que não estavam
tão evidentes para mim ao assistir outras obras suas. A relação com a cidade e
a possibilidade de trazer um corpo expressivo, com múltiplas significações,
dentro da loucura da metrópole, revelou-me muitos questionamentos acerca de
espetáculos, intervenções e performances realizadas no espaço urbano.
Coincidentemente, eu estava, durante as aulas voltadas para a Pina, em cartaz
com o espetáculo de improvisação em dança “Duas Memórias” na Estação da Luz da
CPTM (com a Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros), vivendo na minha própria
pele, no meu corpo, as intensidades de fluxos, energias, sensações e pensamentos
existentes nesta explosão de sentidos e imagens ao se dançar em um espaço
urbano onde a vida está presente em cada gesto, em cada movimento, em cada som
deste nosso corrido dia a dia de cidadão comum...
Pina aponta para a possibilidade de
trazer um olhar poético para a cidade, não apenas através de imagens belas, mas
trazendo para o foco o estranho, aquilo que a priori não deveria estar naquele
lugar, ou então não deveria ser feito daquela forma. Através de procedimentos como o deslocamento, a justaposição e o estranhamento, Pina cria imagens de grande força poética e traz novos olhares para a cidade e para a subjetividade do indivíduo.
“...só a imaginação, para me grudar ao percebido,
pode separar o objeto de seu contexto natural e ligá-lo a um horizonte
interior, pode expandi-lo num mundo ao mobilizar, em mim, todas as profundezas
onde ele possa ressoar e encontrar um eco. A imaginação... reúne as potências
do eu para que se forme uma imagem singular. Ela tem o poder de unir, mas para
fazer surgir a diferença e não para atenuá-la.” (DUFRENNE, 2008, p.96)
Ao mesmo tempo em que Pina propõe imagens que causam estranhamento, ela
parece destacar para os nossos olhos, as sensações mais profundas, particulares
e familiares de cada um de nós. Como se ela colocasse uma lente de aumento
naquilo que já estava ali mas que não estava evidente, trazendo uma reflexão
sobre o indivíduo e o coletivo, sobre o público e o privado, sobre o eu e o
outro.
“Vejo que nelas, que pertencem a
lugares os mais estranhos um ao outro, há algo de semelhante, como se o muito
particular, aquilo pelo qual nós nos distinguimos de todos os outros, fosse
também aquilo que nos une a eles.” (KATZ, 2000, p.15)
Na
experiência de fazer o meu vídeo inspirado no filme da Pina para a montagem da
nossa releitura, senti-me impulsionada a me apropriar do espaço urbano, dar-me
o direito de brincar com ele, extrapolar seus limites, vivenciá-lo através de
todos os meus sentidos (visão, audição, tato, olfato, etc) e propôr imagens que
conversassem com ele. Tirei um dia inteiro para transitar pela cidade e viver
este dia estabelecendo uma relação diferente daquela que estabeleço todos os
dias em meu cotidiano. Como um mergulho na cidade, sentindo esta cidade como
espaço possível para que eu me colocasse como indivíduo e, ao mesmo tempo, como
coletivo, fazendo com que a criação surgisse através da relação entre eu e o
mundo, entre eu e o outro.
“É o homem na multidão que luta diante da linha
evanescente que ainda persiste entre o espaço público e a reserva da intimidade
e, por isso, ainda pode surpreender-se, chocar-se ante a imagem urbana. Não
está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação
da cidade pelo cidadão, essa doença a que, perplexos, assistimos corroer a
imagem da metrópole moderna.” (CALDEIRA, 2009, p. 37)
Interessa-me
em Pina como o individual e o coletivo estão em constante relação, trazendo
imagens onde há a mistura ou a justaposição do espaço público e do espaço
privado, não sendo possível separá-los de forma clara. A partir de
procedimentos que poderiam ser considerados extremamente individuais, como por
exemplo os depoimentos pessoais através das perguntas feitas por Pina, chega-se
a algo que toca a todos nós e que está diretamente relacionado com o mundo em
que vivemos, com os espaços que habitamos, com as relações que estabecemos. Nós
somos seres no mundo. Para ampliar e iluminar algumas imagens, trago um pouco
de Merleau-Ponty e de autores que dialogam com ele como possíveis provocadores
de reflexões sobre Pina:
“Para
Merleau-Ponty (...), antes de ser um objeto, tal como o concebe a visão
clássica das ciências, ou a morada do espírito, tal como o concebe a filosofia
idealista, o corpo é nosso modo de ser-no-mundo. É o corpo que realiza a
abertura do homem ao mundo, colocando-o em situação, por isso ‘O corpo é nosso
meio geral de ter um mundo.’(Merleau-Ponty).” (CASANOVA DOS REIS, 2010,
p.50)
“No
entanto, como adverte Merleau-Ponty (2004), a obra não é gestada nos recôncavos
da subjetividade, mas no encontro do artista com o mundo, que ele transmuta por
sua arte em um outro mundo.” (CASANOVA DOS REIS, 2010, p.72)
“É na
relação com o outro que eu me reconheço como eu.” (CASANOVA DOS REIS, 2010,
p.84)
“... a
experiência estética se situa na origem, naquele ponto em que o homem,
confundido inteiramente com as coisas, experimenta sua familiaridade com as
coisas, experimenta sua familiaridade com o mundo; a natureza se desvenda para
ele, e ele pode ler as grandes imagens que ela lhe oferece.” (DUFRENNE,
2008, p.30)
“É na
intersubjetividade que eu me constituo e revelo minha identidade. A noção de
situação enraíza o homem no espaço e no tempo, no mundo, na relação com as
coisas e com o outro e é dessa relação que emergem os sentidos, ou seja, os
sentidos se instauram no encontro.” (CASANOVA DOS REIS, 2010, p.84)
E para finalizar este
pequeno encadeamento de reflexões e idéias, fico com a imagem do encontro, da
relação com o outro, com o mundo, que tanto nos alimentou e nos surpreendeu em
nossas aulas desta disciplina, e que se estende para nosso fazer artístico,
para nossas pesquisas, para nossas maneiras de estar no mundo, afinal, não vejo
como criar isoladamente, e assim faço minhas as palavras de Pina: “O que
mais me interessa são as relações entre os seres humanos.”
Referências Bibliográficas
CALDEIRA,
Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o
espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo. Annablume, 2009.
CASANOVA DOS
REIS, Alice. Há experiência estética na Biodança? Um estudo fenomenológico
sobre a experiência do corpo em um grupo de Biodança. Tese (doutorado) –
USP, 2010
DUFRENNE, M. Estética
e Filosofia. São Paulo. Perspectiva, 2008.
KATZ, Helena. Pina
Bausch coreógrafa. Jornal da Tarde. São Paulo, 15 de dezembro de 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia
da Percepção. São Paulo. Martins Fontes, 2011.