sábado, 4 de agosto de 2012

O que nos passa, o que nos toca e o que nos acontece: em Pina, somos sujeitos da experiência. Por Gisele Vasconcelos


:
“Eu não investigo como as pessoas se movem, mas o que as move” (Pina Bausch apud Cypriano, 2005, p. 27)

Neste escrito parto da denominação do crítico alemão Norbert Servos (apud Cypriano, 2005, p. 28) para o Teatro-Dança de Pina Bausch enquanto “Teatro da Experiência” e designo o criador no procedimento pina bauschiano como um sujeito da experiência.
Experiência, compreendida à luz de Jorge Larossa Bondía, como “aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma”. O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto, aberto a transformação, sujeito assim como o definido por Larrossa (p. 26): não por sua atividade, mas por sua passividade “feita de paixão”, por sua “receptividade primeira”, por sua “disponibilidade fundamental”, por sua “abertura essencial”.
... aquilo que posso mostrar não pode abranger tudo. Aquilo que posso mostrar é apenas uma tradução do que senti... sei que se fizer outra peça, ela será diferente. Elas dependem das minhas experiências com a companhia. As peças nascem dela mesma, dependem dessas experiências. (Pina Bausch apud Cypriano. 2005, p. 106)
Na proposta de uma ex-posição e não exibição, Pina “expõe no palco os bailarinos em sua fragilidade mais aparente, em suas próprias personalidades, e não como performers que representam tecnicamente um papel” (CYPRIANO, 2005, p.27)
E é nessa relação com a existência, de modo singular e concreto, que transbordam os ensinamentos de Pina, em nossa abordagem antropofágica de aprendizagem de procedimentos baushnianos, para fins artísticos e pedagógicos.
Pina Bausch (1940 – 2009), coreógrafa alemã, foi o segundo ponto-pessoa-princípio da rede artística, mapeada por Bulhões, a ser degustada por nós, aprendizes-atores-educadores no programa de pós-graduação em Artes Cênicas, da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo.
Suas peças foram criadas com a participação de seus bailarinos, através de procedimentos como o de Perguntas e Respostas. Nesse procedimento, a coreógrafa apresenta uma série de perguntas, temas, palavras, frases, estimulando um mostrar a si mesmo.
Ciane Fernandes (2000, p.43), em seu estudo acerca da Repetição e Transformação em Pina Bausch, aponta que “muitas das questões de Bausch implicam relembrar: como era a sua infância? Ou pessoas importantes na sua vida.” Nas respostas: as histórias pessoais de seus dançarinos.
Para Regina Advento, dançarina brasileira que integra desde 1993 o Tanztheater de Wuppertal “há três tipos de respostas: por palavras, por movimentos ou ambos... tudo que respondemos é gravado em vídeo e depois algumas cenas são selecionadas e retrabalhadas individualmente com a Pina... em geral, não temos ideia de para onde vai o material, tudo é centrado na Pina” (Cypriano, p 33)
Nas atividades de investigação dos procedimentos de Pina Bausch, trabalhamos observando os registros audiovisuais de suas obras, assim como os documentários acerca dos trabalhos da coreógrafa em Wuppertal.
Os aprendizes-artistas-educadores da disciplina “Encenações em Jogo”, coordenada por Marcos Bulhões, extraíam movimentos de suas obras. Na tentativa de descrevê-los para a turma, repetiam tal como os haviam percebido em vídeo. No processo de aprendizagem do gesto-movimento, o aprendiz, inicialmente, o repetia solitário numa relação entre ele, o gesto e a tela do computador, buscava descrevê-lo, ou marcando o tempo de cada movimento do tipo 1, 2, 3, 4... Ou mesmo fazendo analogias com imagens: “Todas as palavras não cabem nos pensamentos e ideias”. 
O movimento era então repassado para a turma, que aprendia uma série de seis ou mais movimentos por aula, sendo que, depois, eles eram
interligados compondo no espaço uma dança de gestos copilados em processo de apropriação, repetição e transformação sob a forma de coralidade.
Após o exercício da repetição dos movimentos-gesto de Pina, éramos impulsionados a criarmos, em grupo, nosso próprio repertório guiado pela pergunta do designado então diretor do grupo, que fazia referência ao lugar da Pina enquanto coreógrafa responsável pela ordenação, escolha e transformação do material observado.
A motivação externa, que vem do estímulo-tema-texto, pode ser apenas uma palavra ou uma pergunta, como se costuma dizer, mas é necessariamente o primeiro passo para desencadear a dramaturgia da memória. Esse primeiro estágio tem lugar inteiramente na mente, a qual se esvaziará, então, dos estereótipos e clichês. (SANCHEZ, p. 90)
No processo de criação com base na repetição e motivação externa através do estímulo-tema-texto, os desejos, frustações e esperanças, expressões da subjetividade do artista criador são fundamentais para o método de trabalho de Pina Bausch, que se alimenta de questões subjetivas para focar o social.
Nesse processo dancei: “Qual o meu tempo agora”?
Tempo de festa, de amar de sorrir, tempo de conquista, do silencio, da poesia, véspera do meu aniversário, tempo do sorriso e da alegria. Dizia para todos: Amanhã é meu aniversário.
- Dancei: “O que me move na cena, na criação artística”?
É um sopro, uma respiração, algo que vem de dentro impulsionado pelos sentidos, algo que é sentido e não verbalizado, pode vir por um grito, um sopro, uma canção. É preciso ar e também a falta dele, o extremo, a exaustão, o cansaço físico para a manifestação da ação. A arte está numa outra ordem!
Cantei, quase sem ar, quase sem voz: “se ela um dia despencar do céu e se os pagantes exigirem bis..... me ensina a não andar com os pés no chão... para sempre é sempre por um triz....”
- Dançei: “Eu entro e eu saio”.
De imediato a frase me levou para uma brincadeira popular do Maranhão, o Cacuriá de dona Teté:  - tô entrando... jabuti sabe lê, não sabe escrever, ele trepa no pau e não sabe descer... lê lê lê... tô saindo.
Na dança individual e pessoal, éramos observados pelo diretor-coreógrafo, que trabalhava na observação, exclusão, seleção, repetição e transformação do material expressivo fornecido pelos criadores em estado de jogo. O trabalho de composição de cenas funcionava como montagem, cujo material pessoal vai sendo intercalado pelo material da pina, remodelado numa forma estética, compondo um fragmento de teatro-dança.
No processo de montagem das cenas, “em geral 90% do trabalho assim obtido é depois abandonado”, declara Pina (apud Cypriano, 2005, p. 33). Quando o material não é abandonado, essas histórias pessoais adquirem características estéticas através da repetição e transformação, sem qualquer tipo de apego, pois, como afirma Ciane Fernandes (2000, p. 45), neste tipo de procedimento a “experiência original (significado) é relevante apenas como uma memória esteticamente reconstruída”.
O processo de colagem e montagem com livre associação é um procedimento utilizado por Pina, no qual “pequenas cenas ou sequencias de movimentos são fragmentadas, repetidas, alternadas, ou realizadas simultaneamente, sem um definido desenvolvimento na direção de uma conclusão resolutiva” (FERNANDES, 2000, p. 21)
Para Sarrazac (2012, p. 120) “montagem e colagem designam, com efeito, uma heterogeneidade e uma descontinuidade que afetam igualmente a estrutura e os temas do texto teatral”.
Solange Caldeira afirma que:
A concepção de montagem da dança-teatro recorre a métodos conhecidos da arte cinematográfica: fragmentação do gesto, repetição de uma seqüência, efeito de close e de focalização, fades, olhares para a câmara, elipse narrativa, montagem em câmara rápida.  Em que Bausch agrupa as idéias e as marcações, dá a elas uma conotação e, por fim, uma forma, ou seja, edita, como no cinema.
Nessa experiência de colagem e montagem a turma de “Encenações em Jogo” (2012), se envolveu na devoração/recriação do filme “Lamento da Imperatriz”, de Pina Bausch e tomou a cidade de São Paulo como protagonista para a criação de movimentos-gestos em espaços urbanos da metrópole.
Cada integrante partiu de um espaço, tema, incômodo, escolha, fez a captação de imagens, posteriormente editada pela cineasta, integrante da turma, Luciana Canton, que resultou no vídeo “À Margem da Imperatriz”.
Na experimentação para a composição do filme propus um trabalho com o material orgânico: ÁGUA. Pina Bausch, em muitas de suas obras, faz uso de materiais reais e orgânicos a exemplo da utilização da água, terra ou de cravos sob o palco. Movimentar-se sob a superfície aquática constitui um obstáculo que sugere outro tipo de deslocamento no espaço. Para esse exercício utilizei o ambiente do lago do MASP, na composição de uma sereia urbana.
 “Trata-se do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte”. (Pina Bausch)
Referências Bibliográficas:
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o Saber de Experiência. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Educação. N°19, 2002.
CALDEIRA, Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz: um filme de Pina Bausch. http://www.revistafenix.pro.br/PDF12/secaolivre.artigo.1-Solange.Pimentel.Caldeira.pdf. Acesso em 17 de maio de 2012.
CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000.
SANCHEZ, Licia. A Dramaturgia da Memória na Cena Contemporânea do Teatro-Dança. São Paulo: USP, 2006.
SARRAZAC, Jean - Pierre. Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário