sexta-feira, 9 de agosto de 2013

DESMANCHE E REESCRITA DO CORPO EM PINA  BAUSH
- procedimentos de repetição e colagem -

                                                                                       Dirce Helena Carvalho

Corpos translúcidos, diáfanos, transparentes, atravessam o espaço de ‘ensaio’ dançando histórias de vida, histórias inventadas, histórias criadas coletivamente em perpetuum móbile de idéias, de lugares e não-lugares, de vazios, de vácuos, de (dês) referenciações,de ancestralidades, de memórias, de  imanências, de compartilhamentos, de corpos inscritos em  histórias de vidas... Dia de Encontro!  Dia de PINA BAUSH!
Dançamos todas estas histórias e, fulgurantemente, as tantas histórias dançadas por PINA.
Corpos que se comunicam dançando o ENCONTRO, a partilha, celebrando a arte da vida ou a vida na arte. Seria arte?
Do Lamento de Imperatriz, da Mazurka de Fogo, Da Sagração da Primavera,  com música de Stravisnski, que à época provocou grande escândalo no teatro de Paris. Obra emblemática e quando revisitada por Pina Baush , altera definitivamente a História da Dança. Poesia, vertigem, medo, angústia... Os estranhamentos nas inúmeras histórias dançadas por Pina: histórias de diferentes povos  como nas  AGOURENTAS   carcaças de baleias dançadas no Tei Chan, ou ainda, dos efeitos de estranhamentos no Lamento da Imperatriz e em Barbe Bleue , obra que tem em sua trilha sonora árias cantadas por uma soprano e um baixo.As dissonâncias entre música e as ações corpóreas dos bailarinos reafirmam a estética da descontinuidade e incompletude, ao mesmo em que as conturbadas presenças são quase que imensuráveis.  Pina desafia as leias da física com sua dança termodinâmica fazendo transitar em consonância e (dês) consonância a dynamis – movimento em contínuo e a  therme – energia.
Pequenas células extraídas de diferentes obras de Pina são compartilhadas pelo grupo e postas em jogo. A decupagem de pequenas células exige de cada um de nós acuidade visual para a apreensão da estética baushiana. Eixo. Enraizamento dos pés. Não lutar contra a gravidade. O desequilíbrio no equilíbrio. Os espasmos, os graus de potências, os estados e  as  intensificações de gestos simples.
Células de movimentos ou frases de movimentos, ou um pequeno gesto, ou , ainda,  uma palavra ,uma frase, uma ação sonora ... São estas as composições iniciais a partir de estímulos problematizadores que na poética de Pina são colocadas  aos bailarinos, tais como: Dance o seu medo, Dance a sua angústia, Dance a vida, Dance a morte. Questões  das mais genéricas as mais específicas. Em nossa dança a questão-problema foi colocada por Evaldo: Dance alguma coisa  marcante de sua infância.
A composição de minúsculas partituras são  compartilhadas com o grupo.  Um dos integrantes assume o papel de diretor e faz a edição de nossas danças pessoais somadas as células de movimentos  extraídas  dos trabalhos de Pina em procedimentos de REPETIÇÃO E COLAGEM. E mais uma vez dançamos a nossa dança.
 De que arte  estamos falando? Seriam  encontros,  partilhas, trocas,  memórias pessoais? Ritualidades? Perfomatividades? Teatro performativo? Teatro pós-dramático? Hibridações? Desterritorializações?  Desmanches? Arte da experiência?
Inúmeros conceitos da arte contemporânea estão inscritos nos procedimentos adotados neste encontro. Apenas enunciá-los neste escrito, sem, portanto, debatê-los. Esta é a ideia. 
Uma arte que compartilha, reparte, comunica, socializa, celebrando  suas ancestralidades em meio aos cataclismos da contemporaneidade... “A corda do pai” (Janô),  a corda de nossos ancestrais, da memória de nossas ancestralidades marcadas em nossos corpos . Olho no meu caderninho à época de um dos muitos encontros  com Janô  (Antônio Januzelli ) e Selma Pellizon  e leio uma frase do Mestre : “estamos encharcados de banalidades”. Como esvaziá-las> Como dirimi-las? Como nos libertar das couraças?Como chegar ao vazio pleno? A arte de silenciar. O ritual do silêncio. Fazer arte sem imposições somada às diferentes percepções de todos que  lá estavam.
 Nada escasseava. O modelo de ação, a subversão do próprio modelo, mas que ainda permanecia na memória corporal, a memória de nossas infâncias em danças arrebatadoras que comunicavam nossas dores e nossas alegrias em procedimentos de  REPETIÇÕES  e COLAGENS.
Ao final, estávamos plenos, experimentando o Vazio Pleno. Libertos dos encharcamentos, das couraças que tanto nos afligem. Enfim, acudidos pela arte de fazer arte.
Desligados do tempo mecânico, alteramos o sentido de temporalidade, vivendo e revelando o presente como a única realidade tangível na criação da experiência coletiva.
A arte compartilhada em PINA!  Arte da experiência coletiva tão resguardada  por , Oiticica em seus Penetráveis . O mesmo Hélio que  veste  a arte com seus Parangolés junto ao pessoal da Mangueira e Lygia Clark  com o seu Caminhando , desligando-se de quaisquer mitos externos para viver o tempo imanente, o tempo do ato corpóreo fazendo-se nele mesmo. O corpo torna-se o receptáculo da obra. A obra é o corpo atingindo o “singular estado da arte” (Lygia Clark).
 Arte que pode ser feita por quem quiser fazê-la. Não mais existe o espectador passivo. Ele é partícipe da obra. Artistas e não-artistas? Esta é a grande reviravolta da arte contemporânea, a saber, tirar o espectador do lugar-comum e  compartilhar a arte no espaço-mundo diluindo as fronteiras entre arte e vida. A arte torna-se a experiência coletiva.
Hoje, na experiência do corpo compartilhado  em PINA, subvertemos a própria arte. Foi lindo ver Célia , artista do corpo, dançando nos andaimes da sala de ensaio.  Como foi lindo também ver a dança dos colegas que se denominam não-atores. Mas o que é ser ator? Afinal a áurea do artista e da obra de arte já foram  problematizadas no início do século XX pelas vanguardas europeias. Duchamp , integrante do dadaísmo, ao expor sua Fonte (Urinol),  subverte os três elementos da  comunicação estética: a obra, o artista e o espectador. Qual é o lugar da arte? Quem é o artista? O que é a obra de arte? A partir do novo paradigma inicia-se  uma  nova   História da Arte.
Seria o  artista um ser  aurático, ‘escolhido’ entre tantos outros? Esta visão romântica do artista não mais se coaduna  a concepções da arte como experiência coletiva.
A dialética das tendências contemporâneas negam os cânones tradicionais da arte. Portanto, pensar que o artista é um ser privilegiado, envolto em uma áurea é, nos dias atuais, reforçar os padrões de comportamentos divulgados pelos meios de comunicação. A arte não tem mais a natureza mimética, tão menos  ilustrativa.
A incompletude, o estranhamento são chaves importantes para o entendimento da arte contemporânea, pois tiram o espectador do lugar-comum, incitando-o a pensar sobre a obra em suas inúmeras leituras.
Pensar em projetos extensivos que dêem conta de experiências compartilhadas na arte, possibilitando a ampliação de repertórios corporais no desmanche de couraças, de corpos padronizados, mecanizados, é, sem dúvida, uma das prerrogativas da pedagogia teatral.
Somos todos FAZEDORES. Não há mais lugar para espectadores passivos, pois quando a arte não os convida  a dançar , os  instiga   a preencher os vazios da  obra. A obra aberta,  inacabada,  é, portanto,  uma das características  da arte contemporânea e,claro, de Pina Baush.
 Não há, portanto, separações, pois a arte que aqui exponho  não exclui , ao contrário, ela  não separa o homem do homem colocando  todos em movimento  nos convida a dançar inscrevendo uma dramaturgia corporal de pertencimento. Como hoje, no encontro com PINA.
Dançar com Pina em procedimentos compartilhados, repetidos e colados, nos proporcionou vivenciar a arte como EXPERIÊNCIA. A experiência do corpo coletivo em desmanche e reescrita. Uma reescrita que se fez no exercício de alteridades para a apreensão de si e do outro  na partilha das  diferentes percepções em PINA.
Ao dançar  PINA dancei  o Encontro!


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Pina Bausch

Protocolo

  Por Célia Govêia

             Palavras de Pina : “ Não estou interessada em como as pessoas se movem, mas o que as move”. Essas palavras de Pina, citadas pelo cineasta alemão Win Wenders no Caderno 2 de “O Estado de São Paulo” em 14/02/2011, demonstram que, além do sentido da atividade neuromuscular, os movimentos de dança têm a função de projetar o imaginário e o simbólico.
            Em “ O Lamento da Imperatriz : A Linguagem em Trânsito e o Espaço Urbano em Pina Bausch”,  Solange Caldeira ressalta a narrativa não linear presente nas peças de dança de Pina Bausch, nas quais o discurso fragmentado é povoado por imagens poéticas. Pina olha para o entorno, procedimento que se acentuou a partir da década de oitenta, quando o ponto de partida de suas criações passou a ser as cidades visitadas pela companhia, mantendo sempre o foco em como as imagens recolhidas ficaram impressas nos corpos dos bailarinos.
         Por sua vez, Ciane Fernandes destaca o método da repetição como veículo que leva ao desprendimento da situação real. Considerada mãe do aprendizado e recurso ao treinamento em dança, a repetição conduz ao efeito da distorção.
        O professor Bulhões solicitou a reflexão sobre o estranhamento poético presente nos trabalhos de Pina Bausch, que perturbam e deixam os espectadores inquietos, intrigados. Reação face ao singular, ao extraordinário, ao misterioso, ou processo de obscurecimento da forma, Caldeira salientou o fato de Pina remeter o espectador a mundos remotos e estranhos.
       As aulas do curso Encenações em Jogo ocorreram no teatro e os aquecimentos corporais no palco. Movimentos extraídos de vídeos das coreografias de Bausch  foram absorvidos por cada participante, depois mostrados e repetidos por todos. No primeiro encontro, o professor solicitou proceder individualmente a uma colagem dos movimentos absorvidos, editada por um colega que se propôs dirigir o trabalho. No segundo encontro o elemento estranhamento foi acrescido. As propostas aos exercícios cênicos consistiram em focar nas relações, ou então uma pergunta – método inerente ao processo criativo de Pina Bausch, foi formulada, especificamente a rememoração da vivência mais marcante no período da infância. As tônicas presentes consistiram na concentração, entrega e intensidade por parte de todos os alunos. Esses foram divididos em grupos, sempre com a constituição de um diretor, que ora selecionava o material contido nas improvisações individuais, ora orientava as composições no espaço.
    Nos encontros-vivências proporcionados pelo professor Marcos Bulhões, houve uma constante menção à acupuntura poética. Curiosamente, a palavra acu tem uma provável origem tupi, correspondendo a calor ou quentura. Derivada do latim, corresponde a agulha. Utilizada há milênios por chineses e japoneses, consiste na introdução, por meio de uma picada ( punctura) , de agulhas muito finas em pontos cutâneos precisos, sobre “linhas de força” vitais, às vezes afastadas da região doente.

BIBLIOGRAFIA:

CALDEIRA, Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz  : A Linguagem em Trânsito e o Espaço Urbano em Pina Bausch. São Paulo : Annablume, 2009.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro : Repetição e Transformação. Ed. Hucitec
Dicionários:
AUGÉ, GILLON, HOLLIER-LAROUSSE, MOREAU et Cie..Petit Larousse. 2 ed.. Paris : Librairie Larousse, 1959.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed.. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1986.