SOBRE A REPETIÇÃO EM
PINA BAUSCH
A
repetição é um dos procedimentos poéticos de Pina Bausch destacados por Ciane
Fernandes. Segundo Fernandes, ao repetir gestos do cotidiano, Bausch rompe com
a ideia de espontaneidade no trabalho do bailarino. A estetização do cotidiano
gerada pela repetição nos leva a pensar na produção de uma vertente das artes
visuais contemporânea. Diversos artistas plásticos fazem verdadeiras coleções
de objetos retirados do cotidiano (vestidos de noiva, cartões postais,
sacolinhas plásticas de companhias aéreas...) que são “colados”, “costurados”
quase que aleatoriamente transformando-se em objetos artísticos. Perdem sua
função original e ganham o status de obras de arte. Esta arte Conceitual é
descendente direta dos ready mades deMarcel Duchamp.
Ao
transformar gestos cotidianos em dança por meio da repetição, Bausch atua
poeticamente na mesma direção e em sentidos opostos quanto à recepção da obra
de arte. Ao espectador é proposta a esteticização de seu cotidiano; ele é
convidado a olhar o movimento humano com olhos poéticos. No outro sentido, ao
retirar do cotidiano sua gestualidade e repeti-la, Bausch esvazia o gesto de
seu conteúdo de comunicação direta e preenche-o de conteúdo poético. Uma
gargalhada ou um acesso de choro ao serem repetidos perdem sua significação
primeira (a de um estado emocional) e ganham significados poéticos.
A
repetição de gestos cotidianos leva-nos a duas leituras, que tanto podem ser
complementares como conflitantes. Henri Bergson em O Riso observa que a
mecanização dos gestos, característico da repetição, pode provocar no
observador um estado de comicidade ao flagrar no ser humano uma movimentação de
máquinas, involuntária. Esta gestualidade quando repetida diversas vezes leva o
observador do riso à reflexão. É claro que o riso é decorrente da reflexão (o
Homem é o único animal que ri, etc etc), porém esta atitude reflexiva pode
ser provocada pelo estranhamento do
gesto. E aqui pensamos no gestus
brechtiano. O que era um deslocamento poético do gesto cotidiano para uma
leitura estética, torna-se também uma atitude política (a Ética e a Estética
serão o mesmo? Hegel e Wittgeinstein...). O espectador “estranha” a
recontextualização e é convidado a refletir sobre as intenções do artista.
Aproximar
Pina Bausch de Brecht é afastar a recepção de sua obra da Arte Pura (se é que
tal conceito possa existir...) e aproximá-la aos postulados de uma Arte
Política (se bem que toda ação humana é uma ação política, segundo
Aristóteles). Realizar esta aproximação é entrar na discussão sobre o político
na obra de arte; é deslocar a ação política da palavra para o gesto; do
discurso engajado para o discurso poético. “O aspecto realmente social da arte
é a sua forma” (Lukács)
Talvez
este postulado seja uma heresia para um pensamento político ortodoxo de esquerda.
Brecht estaria tão longe de Bausch quanto a terra do céu. Não é porém o que
pensava um dos mais influentes dramaturgos contemporâneos, Heiner Müller: “No
teatro da Pina Bausch a imagem é um espinho no olho, os corpos escrevem um
texto que se recusa a ser publicado, a prisão da significação” (MÜLLER, Heiner.
“Sangue na sapatilha ou o enigma da liberdade” in KOUDELA, Ingrid D. Heiner
Müller: o espanto no teatro)
Mas
voltemos à origem deste texto, a repetição em Pina Bausch, para concluir que
talvez este procedimento não seja usado simplesmente como “uma maneira bonita
de se dançar”, mas como uma forma de pensamento. A repetição não é um estilo,
mas um jeito de pensar. “Não me digam que sou louco / É só um jeito de corponão precisa ninguém me acompanhar” (Caetano Veloso).
Bibliografia
FERNANDES,
Ciane. “A dança teatro da Pina Bausch: redançando a história corporal”, in Pina Bausch e o Wuppertal
Dança-Teatro: Repetição e Transformação, HUCITEC, São Paulo, 2000.
Marcelo
Gianini
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