São Paulo, 28 de junho de 2012.
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade
de São Paulo.
Disciplina: Encenações em Jogo: Experimentos de
Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo
Docente Responsável: Marcos
Aurélio Bulhões Martins
Aluna: Laís Marques Silva / Nº USP 3455577
Protocolo
sobre Módulo II – Poéticas Modelares: Pina Bausch
A santa de patins: Pina Bausch[1]
“Levantar,
cair,
cambalear, desabar,
escorregar, agarrar, soltar,
saltar, avançar às
pressas, dar uma cambalhota,
tombar,
rolar, buscar proteção,
se endurecer, se
contrair,
fincar as garras, deitar o braço em torno de alguém,
se tocar e se
afastar de novo (…)
Homens se mexem
e enquanto esses gestos, saltos,
passos…
levados à ribalta por Pina, são encenados,
destacados
e
conscientizados,
muitas vezes com graça, mas sempre leves e jamais “prenhes
de
significado”,
de repente se vê assim,
como se jamais ante se tivesse
compreendido, nem de longe,
como cada um de nossos movimentos internos, de
nossas
emotions
se anunciam para fora, prosseguem, se entranham,
se
transformam em motions.” (Wim Wenders)
Das
inúmeras possibilidades de análise que a obra de Pina Bausch suscita uma delas é a retomada de alguns dos
procedimentos utilizados pela coreógrafa para a composição do ator-bailarino. A
força nas imagens-metáfora que os espetáculos apresentam, assim como a
capacidade de construir as ações a partir de princípios que extrapolam o
trabalho coreográfico mais convencional sugerem um projeto artístico que soube
inventar seus próprios mecanismos a partir de variadas relações entre corpo e
movimento.
O repertório desenvolvido
por Bausch surge da materialidade e presença cênica e implica na utilização das
sensações, dos desejos e dos afetos como ingredientes para a composição. Elementos
significativos na perspectiva da cena contemporânea, tais ingredientes produzem
metáforas no corpo que dança a partir de uma lógica que não é puramente
racional, mas que leva em conta outras habilidades humanas, tais como a
criatividade e o auto-conhecimento.
O fato de a
companhia trabalhar com bailarinos mais velhos, por exemplo, significa que o
exercício da composição não está pautado pela execução tecnicamente perfeita do
movimento, muito menos pelo desempenho gratuitamente acrobático do corpo na cena.
Ao contrário, o mundo representado pelos bailarinos de Wuppertal surge numa
versão nada idealizada e, por isso mesmo, confiante num humor bastante peculiar. Distante dos padrões utilizados pela dança
clássica os experientes bailarinos devem,
por exemplo, abandonar as suas máscaras de super-homens, com super-poderes, muito
antes de pisarem no palco.
Foi o teatro
que influenciou um dos procedimentos mais característico do processo de Pina
Bausch, que é o uso das perguntas e respostas como recurso para as composições.
A necessidade de trazer interrogações que se tornam dispositivos de cena ao
longo dos ensaios aconteceu quando Pina foi convidada a dirigir uma obra
baseada em Macbeth: “utilizei, além dos bailarinos, vários atores, e percebi
que não podia criar a partir de evoluções do corpo, mas sim da cabeça, e por
isso comecei a fazer perguntas sobre o que o grupo pensava do texto e o vínculo
com a vida pessoal de cada um[2]”
A improvisação exige
grande capacidade de síntese, assim como o uso da memória mais íntima dos seus
colaboradores. Para que o trabalho não se torne uma composição genérica e que
possa revelar as singularidades dos bailarinos, alguns princípios devem estar
presentes:
- ser você
mesmo
- não atuar ou
se valer de máscaras para a representação
- ser justo ao
tema mas não óbvio
- não
intelectualizar
- ser simples
- não banalizar
- não querer
mostrar o que se quer dizer
- não ser abstrato
- não
caracterizar
Apesar de serem
questões que afloram o mais íntimo de cada bailarino, Bausch sabe que as
histórias pessoais não são a brecha para o desfile egocêntrico dos artistas, ao
contrário, o uso do subjetivo é estratégia para aflorar o social[3].
Assim, um conceito importante de ser destacado para a composição é a referência
ao estranhamento brechtiano que, nesse caso, se configura enquanto um “estranhamento poético”. O Lamento da
Imperatriz, filme realizado pela coreógrafa em 1989, traz um exemplo sobre como
isso acontece:
As imagens bauschianas trazem em si fortes conotações
justamente por causar espanto ao romperem com o comum, o esperado. Nesse
sentido, ao aparecerem em contextos cotidianos, produzem um estranhamento
próximo do brechtiano, que leva à reflexão crítica, usando os limites do humor.
Um bom exemplo é a cena da mulher sentada numa poltrona no meio de um
cruzamento, no centro da cidade. Enquanto a mulher fuma tranqüilamente seu
cigarro, os carros cruzam sem parar. A surpresa faz sorrir, mas segundos depois
é possível reflexões complementares, sobre o absurdo da solidão humana. Nenhum
carro ou ônibus pára, e as pessoas que passam sequer olham para a mulher.
Apenas um pedestre passa e vira-se para olhar de novo, rapidamente, e segue em
frente.[4]
As composições
trabalhadas por Pina Bausch são editadas (tanto no filme quanto nas
coreografias), com base na sobreposição e justaposição de imagens que podem ser
desconexas e que atuam pela complementariedade dos sentidos. A beleza do gesto surge
da simplicidade das ações que também comportam deslocamentos, obstáculos e
forte sensorialidade junto aos materiais utilizados. As imagens constituem uma
dramaturgia visual que é ativada pelo uso constante da repetição. As composições, portanto, vão adquirindo novas possibilidades
de leituras, a partir de um mesmo “leitmotiv” disposto ao longo do espetáculo.
Todas essas estratégias
de criação podem ser reconhecidas nas raízes que formaram a mais expoente
criadora do Tanztheater. Não por
acaso, Pina associa fortes referências da cultura alemã e mundial ao seu
trabalho coreográfico: inicialmente como bailarina clássica, passando para a
aprendizagem com o mestre que inventou a dança-teatro, Kurt Jooss (que por sinal foi aluno de Mary Wigman, a mãe da dança expressionista alemã que, por sua vez,
se inspirava nas aulas de Rudolf Laban,
cujo trabalho pretendia libertar o movimento dos padrões acadêmicos), além das
experiências com a dança moderna norte-americana, na Juilliard School e no
Metropolitan Opera, onde vai trabalhar no início de sua carreira. No contexto
da cena contemporânea, ainda, os movimentos produzidos pela dança-teatro alemã pode
significar o ampliamento das fronteiras entre as artes da cena sugerindo, por
exemplo, outros caminhos para a criação dita não-textocêntrica.
Talvez o mais
indicado no caso de Pina Bausch, entretanto, seja se inspirar numa de suas (raras)
falas, registradas no filme feito por Win Wenders em sua homenagem. Num ensaio
de Cafe Muller (dizem que o título é
uma referência às leituras de Heiner Muller que a coreógrafa fazia na época),
ela confessa que o modo como seus olhos se fecham no decorrer da coreografia
determina toda a natureza da sua caminhada pelo palco, bem como da relação que
seu corpo tem com os demais elementos. É no mergulho radical sobre si mesmo que
a sua obra se torna paradoxalmente universal.
Como numa
brincadeira infantil, as composições combinam o prazer e a invenção do jogo com
a seriedade de quem brinca à sério. Um desejo aqui é que o teatro se inspire, quem
sabe, numa inteligência “à la Pina”, feita juntamente com os seus “homens-crianças”
e que tem a estranha capacidade de dizer ao seu público muito mais que mil
palavras juntas.
[1] Foi assim que Fellini descreveu sua primeira visão de
Pina de Bausch.
[2] Cypriano, F. Pina Bausch. Cosac Naify: São
Paulo. Pág. 33
[3] Idem. p. 31
[4] Cladeira, S. P. O Lamento da Imperatriz: um
filme de Pina Bausch. Artigo publicado na Revista de História e
Estudos culturais. Julho 2007, Vol. 4 n. 6. Pág
6.
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