terça-feira, 3 de julho de 2012


São Paulo, 28 de junho de 2012.
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo.
Disciplina: Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo
Docente Responsável: Marcos Aurélio Bulhões Martins
Aluna: Laís Marques Silva / Nº USP 3455577
Protocolo sobre Módulo II – Poéticas Modelares: Pina Bausch


A santa de patins: Pina Bausch[1]

“Levantar, cair,
cambalear, desabar,
escorregar, agarrar, soltar,
saltar, avançar às pressas, dar uma cambalhota,
tombar,
rolar, buscar proteção,
se endurecer, se contrair,
fincar as garras, deitar o braço em torno de alguém,
se tocar e se afastar de novo (…)
Homens se mexem
e enquanto esses gestos, saltos, passos…
levados à ribalta por Pina, são encenados,
destacados
e conscientizados,
muitas vezes com graça, mas sempre leves e jamais “prenhes
de significado”,
de repente se vê assim,
como se jamais ante se tivesse compreendido, nem de longe,
como cada um de nossos movimentos internos, de nossas
emotions
se anunciam para fora, prosseguem, se entranham,
se transformam em motions.” (Wim Wenders)
            Das inúmeras possibilidades de análise que a obra de Pina Bausch suscita uma delas é a retomada de alguns dos procedimentos utilizados pela coreógrafa para a composição do ator-bailarino. A força nas imagens-metáfora que os espetáculos apresentam, assim como a capacidade de construir as ações a partir de princípios que extrapolam o trabalho coreográfico mais convencional sugerem um projeto artístico que soube inventar seus próprios mecanismos a partir de variadas relações entre corpo e movimento.
O repertório desenvolvido por Bausch surge da materialidade e presença cênica e implica na utilização das sensações, dos desejos e dos afetos como ingredientes para a composição. Elementos significativos na perspectiva da cena contemporânea, tais ingredientes produzem metáforas no corpo que dança a partir de uma lógica que não é puramente racional, mas que leva em conta outras habilidades humanas, tais como a criatividade e o auto-conhecimento.
O fato de a companhia trabalhar com bailarinos mais velhos, por exemplo, significa que o exercício da composição não está pautado pela execução tecnicamente perfeita do movimento, muito menos pelo desempenho gratuitamente acrobático do corpo na cena. Ao contrário, o mundo representado pelos bailarinos de Wuppertal surge numa versão nada idealizada e, por isso mesmo, confiante num humor bastante peculiar. Distante dos padrões utilizados pela dança clássica os experientes bailarinos devem, por exemplo, abandonar as suas máscaras de super-homens, com super-poderes, muito antes de pisarem no palco.
Foi o teatro que influenciou um dos procedimentos mais característico do processo de Pina Bausch, que é o uso das perguntas e respostas como recurso para as composições. A necessidade de trazer interrogações que se tornam dispositivos de cena ao longo dos ensaios aconteceu quando Pina foi convidada a dirigir uma obra baseada em Macbeth: “utilizei, além dos bailarinos, vários atores, e percebi que não podia criar a partir de evoluções do corpo, mas sim da cabeça, e por isso comecei a fazer perguntas sobre o que o grupo pensava do texto e o vínculo com a vida pessoal de cada um[2]
A improvisação exige grande capacidade de síntese, assim como o uso da memória mais íntima dos seus colaboradores. Para que o trabalho não se torne uma composição genérica e que possa revelar as singularidades dos bailarinos, alguns princípios devem estar presentes:
- ser você mesmo
- não atuar ou se valer de máscaras para a representação
- ser justo ao tema mas não óbvio
- não intelectualizar
- ser simples
- não banalizar
- não querer mostrar o que se quer dizer
- não ser abstrato
- não caracterizar
Apesar de serem questões que afloram o mais íntimo de cada bailarino, Bausch sabe que as histórias pessoais não são a brecha para o desfile egocêntrico dos artistas, ao contrário, o uso do subjetivo é estratégia para aflorar o social[3]. Assim, um conceito importante de ser destacado para a composição é a referência ao estranhamento brechtiano que, nesse caso, se configura enquanto um “estranhamento poético”. O Lamento da Imperatriz, filme realizado pela coreógrafa em 1989, traz um exemplo sobre como isso acontece:
As imagens bauschianas trazem em si fortes conotações justamente por causar espanto ao romperem com o comum, o esperado. Nesse sentido, ao aparecerem em contextos cotidianos, produzem um estranhamento próximo do brechtiano, que leva à reflexão crítica, usando os limites do humor. Um bom exemplo é a cena da mulher sentada numa poltrona no meio de um cruzamento, no centro da cidade. Enquanto a mulher fuma tranqüilamente seu cigarro, os carros cruzam sem parar. A surpresa faz sorrir, mas segundos depois é possível reflexões complementares, sobre o absurdo da solidão humana. Nenhum carro ou ônibus pára, e as pessoas que passam sequer olham para a mulher. Apenas um pedestre passa e vira-se para olhar de novo, rapidamente, e segue em frente.[4]

As composições trabalhadas por Pina Bausch são editadas (tanto no filme quanto nas coreografias), com base na sobreposição e justaposição de imagens que podem ser desconexas e que atuam pela complementariedade dos sentidos. A beleza do gesto surge da simplicidade das ações que também comportam deslocamentos, obstáculos e forte sensorialidade junto aos materiais utilizados. As imagens constituem uma dramaturgia visual que é ativada pelo uso constante da repetição. As composições, portanto, vão adquirindo novas possibilidades de leituras, a partir de um mesmo “leitmotiv” disposto ao longo do espetáculo.
Todas essas estratégias de criação podem ser reconhecidas nas raízes que formaram a mais expoente criadora do Tanztheater. Não por acaso, Pina associa fortes referências da cultura alemã e mundial ao seu trabalho coreográfico: inicialmente como bailarina clássica, passando para a aprendizagem com o mestre que inventou a dança-teatro, Kurt Jooss (que por sinal foi aluno de Mary Wigman, a mãe da dança expressionista alemã que, por sua vez, se inspirava nas aulas de Rudolf Laban, cujo trabalho pretendia libertar o movimento dos padrões acadêmicos), além das experiências com a dança moderna norte-americana, na Juilliard School e no Metropolitan Opera, onde vai trabalhar no início de sua carreira. No contexto da cena contemporânea, ainda, os movimentos produzidos pela dança-teatro alemã pode significar o ampliamento das fronteiras entre as artes da cena sugerindo, por exemplo, outros caminhos para a criação dita não-textocêntrica.
Talvez o mais indicado no caso de Pina Bausch, entretanto, seja se inspirar numa de suas (raras) falas, registradas no filme feito por Win Wenders em sua homenagem. Num ensaio de Cafe Muller (dizem que o título é uma referência às leituras de Heiner Muller que a coreógrafa fazia na época), ela confessa que o modo como seus olhos se fecham no decorrer da coreografia determina toda a natureza da sua caminhada pelo palco, bem como da relação que seu corpo tem com os demais elementos. É no mergulho radical sobre si mesmo que a sua obra se torna paradoxalmente universal.
Como numa brincadeira infantil, as composições combinam o prazer e a invenção do jogo com a seriedade de quem brinca à sério. Um desejo aqui é que o teatro se inspire, quem sabe, numa inteligência “à la Pina”, feita juntamente com os seus “homens-crianças” e que tem a estranha capacidade de dizer ao seu público muito mais que mil palavras juntas.



















[1] Foi assim que Fellini descreveu sua primeira visão de Pina de Bausch.
[2] Cypriano, F. Pina Bausch. Cosac Naify: São Paulo. Pág. 33
[3] Idem. p. 31
[4] Cladeira, S. P. O Lamento da Imperatriz: um filme de Pina Bausch. Artigo publicado na Revista de História e Estudos culturais. Julho 2007, Vol. 4 n. 6. Pág 6.

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