quinta-feira, 21 de junho de 2012


As histórias pessoais como isca para as histórias coletivas
por Janaina Leite

Desde que o “módulo Pina” teve início, trago na cabeça um livro que li a um certo tempo chamado Bandoneon. Em que o tango pode ser bom para tudo? e que fazia referência ao nome de um espetáculo de 1981 de Pina Bausch. “Em que o tango pode ser bom para tudo?” é então um título de espetáculo, de um livro (onde o processo criativo de Pina Bausch é descrito), mas é também uma das perguntas que foi lançada por ela aos bailarinos durante o processo para provocar a criação. Me encanta a especificidade da pergunta, como se se tratasse de um “em que uma aspirina, um pedaço de cizal, uma tesoura sem ponta, uma caixa vazia pode ser bom para tudo?” - jogo suposto com a “utilidade” das coisas - , somada à imagem do tango em sua inutilidade e ao “tudo” em sua generalidade, criando um efeito poético marcante sem que se caia numa espécie de abstração um tanto vaga. O que impressiona na qualidade das perguntas é que elas são específicas ao mesmo tempo que propõe um salto poético. Não deixam assim o bailarino nem preso numa mecânica coreográfica, nem solto numa abstração generalizante. Disso advém, ao meu ver, a qualidade (no sentido de “característica”) dramatúrgica de suas obras.
E este é o ponto que escolhi para registrar aqui: a dramaturgia em Pina. O que se move, se move a partir de perguntas – este é o seu processo – que convocam as histórias dos artistas que com ela trabalham. Essas histórias, sentimentos, impressões, lembranças, associações movidas por estas perguntas se transformam em gestos, movimentos, palavras, ações, olhares, expressões. Nada é vazio em Pina, ou neutro, porque existe uma dramaturgia dançada na obra que sem que isso seja da ordem da representação. Esta dramaturgia atravessa os materiais conferindo-lhes textura, intensidade, brilho (o solar e o sombrio, por exemplo) e, sobretudo, relação entre pessoas e pessoas, entre pessoas e coisas, pessoas e espaço, pessoas e público. Acredito que o ponto da “relação” é um dos pontos fundamentais quando pensamos em dramaturgia e em seus espetáculos existe uma noção de vínculo e, fundamentalmente, um vínculo afetivo que impregna o dançar, o mover-se, o agir, daí, acredito, a sensação tão forte de que, ainda que eu não possa – e nem se pretende isso – fazer todos os nexos, uma infinidade de histórias estão atravessando esse dançar.
Como nos conta Mirian Rinaldi em seu artigo sobre processos que se utilizam do depoimento pessoal (caso do seu grupo, o Teatro da Vertigem e caso do Thanztheather), “Bausch defende a ideia de que o teatro é o espaço das subjetividades e das recordações”. Ela se interessa pelo que é vital em cada um, pelo singular.
Jean-Louis Comolli, crítico e cineasta francês, ao falar das pessoas que ele encontra em seus filmes documentais, diz algo que me vem muita a cabeça ao pensar nesse singular que irrompe do material artístico. Reproduzo essa citação e proponho que onde ele diz “filme”, coloquemos “obra”, seja de teatro ou dança, nestas, como em Pina, onde há espaço para que este singular irrompa.

"O que se passa com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que tornam-se, assim, personagens do filme? Eles nos fazem conhecer e reter, antes de tudo, que existem fora do nosso projeto de filme. (...) Estes homens ou estas mulheres que nós filmamos, que nesta relação aceitaram entrar, nela irão interferir e para ela transferir, com singularidade, tudo o que carregam consigo de determinações e de dificuldades, de pesado e de graça, de sua sombra - que, com eles, não será reduzida -, tudo o que a experiência de vida neles terá modelado. Ao mesmo tempo, alguma coisa da complexidade das sociedades e alguma coisa da exceção irremediável da uma vida. Isto quer dizer que nós, filmamos também algo que não é visível, filmável, não é feito para o filme, não está ao nosso alcance, mas que se encontra com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas, em todo o tecido que trama a máquina cinematográfica." (COMOLLI, 2008)

Cada corpo traz uma história, traz as marcas dessa história. Cada forma de pensar, de sentir, de ir em direção ao outro e ao mundo é singular em cada um de nós.
E ao mesmo tempo ela parte sim das histórias pessoais, mas buscando que essas histórias sejam “iscas para as histórias coletivas” (RINALDI, 2006). Então, sem que isso seja uma contradição, no muito singular pode existir um salto onde essa singularidade se universaliza e uma história pessoal passa a ser a história de todos nós.

Referências bibliográficas:

COMOLLI, J.L. Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

HODGE, E. & WEISS, U. Bandoneon. Em que o tango pode ser bom para tudo? Attar Editorial: ão Paulo, 1989.

RINALDI, M. O ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem. Revista Sala Preta. Número 06, 2006. http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF06/SP06_016.pdf

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