As histórias
pessoais como
isca para as
histórias coletivas
por
Janaina
Leite
Desde que o “módulo Pina” teve início, trago na cabeça um
livro que li a um certo tempo chamado “Bandoneon. Em
que o tango pode
ser bom para tudo?” e que fazia referência ao nome de um espetáculo de 1981 de Pina Bausch. “Em que o tango pode ser bom para tudo?” é então um título de espetáculo, de um livro (onde o processo criativo de Pina Bausch é descrito), mas é
também uma das perguntas que foi lançada por ela aos bailarinos
durante o processo para provocar a criação. Me encanta a
especificidade da pergunta, como se se tratasse de um “em que uma
aspirina, um pedaço de cizal, uma tesoura sem ponta, uma caixa vazia
pode ser bom para tudo?” - jogo suposto com a “utilidade” das
coisas - , somada à imagem do tango em sua inutilidade e ao “tudo”
em sua generalidade, criando um efeito poético marcante sem que se
caia numa espécie de abstração um tanto vaga. O que impressiona na
qualidade das perguntas é que elas são específicas ao mesmo tempo
que propõe um salto poético. Não deixam assim o bailarino nem
preso numa mecânica coreográfica, nem solto numa abstração
generalizante. Disso advém, ao meu ver, a qualidade (no sentido de
“característica”) dramatúrgica de suas obras.
E este é o ponto que escolhi para registrar aqui: a dramaturgia em
Pina. O que se move, se move a partir de perguntas – este é o seu
processo – que convocam as histórias dos artistas
que com ela trabalham. Essas histórias, sentimentos, impressões,
lembranças, associações movidas por estas perguntas se transformam
em gestos, movimentos, palavras, ações, olhares, expressões. Nada
é vazio em Pina, ou neutro, porque existe uma dramaturgia dançada
na obra que sem que isso seja da ordem da representação. Esta
dramaturgia atravessa os materiais conferindo-lhes textura,
intensidade, brilho (o solar e o sombrio, por exemplo) e, sobretudo,
relação entre pessoas e pessoas, entre pessoas e coisas, pessoas e
espaço, pessoas e público. Acredito que o ponto da “relação”
é um dos pontos fundamentais quando pensamos em dramaturgia e em
seus espetáculos existe uma noção de vínculo e, fundamentalmente,
um vínculo afetivo que impregna o dançar, o mover-se, o agir, daí,
acredito, a sensação tão forte de que, ainda que eu não possa –
e nem se pretende isso – fazer todos os nexos, uma infinidade de
histórias estão atravessando esse dançar.
Como nos conta Mirian Rinaldi em seu artigo sobre processos que se
utilizam do depoimento pessoal (caso do seu grupo, o Teatro da
Vertigem e caso do Thanztheather),
“Bausch defende a ideia de que o teatro é o espaço das
subjetividades e das recordações”. Ela se interessa pelo que é
vital em cada um, pelo singular.
Jean-Louis Comolli, crítico e cineasta francês, ao falar das
pessoas que ele encontra em seus filmes documentais, diz algo que me
vem muita a cabeça ao pensar nesse singular que irrompe do material
artístico. Reproduzo essa citação e proponho que onde ele diz
“filme”, coloquemos “obra”, seja de teatro ou dança, nestas,
como em Pina, onde há espaço para que este singular irrompa.
"O
que
se
passa
com
aqueles
que
filmamos,
homens
ou
mulheres,
que
tornam-se,
assim,
personagens
do
filme?
Eles
nos
fazem
conhecer
e
reter,
antes
de
tudo,
que
existem
fora
do
nosso
projeto
de
filme.
(...)
Estes
homens
ou
estas
mulheres
que
nós
filmamos,
que
nesta
relação
aceitaram
entrar,
nela
irão
interferir
e
para
ela
transferir,
com
singularidade,
tudo
o
que
carregam
consigo
de
determinações
e
de
dificuldades,
de
pesado
e
de
graça,
de
sua
sombra
-
que,
com
eles,
não
será
reduzida
-,
tudo
o
que
a
experiência
de
vida
neles
terá
modelado.
Ao
mesmo
tempo,
alguma
coisa
da
complexidade
das
sociedades
e
alguma
coisa
da
exceção
irremediável
da
uma
vida.
Isto
quer
dizer
que
nós,
filmamos
também
algo
que
não
é
visível,
filmável,
não
é
feito
para
o
filme,
não
está
ao
nosso
alcance,
mas
que
se
encontra
lá
com
o
resto,
dissimulado
pela
própria
luz
ou
cegado
por
ela,
ao
lado
do
visível,
sob
ele,
fora
do
campo,
fora
da
imagem,
mas
presente
nos
corpos
e
entre
eles,
nas
palavras
e
entre
elas,
em
todo
o
tecido
que
trama
a
máquina
cinematográfica."
(COMOLLI,
2008)
Cada corpo traz uma história, traz as marcas dessa história. Cada
forma de pensar, de sentir, de ir em direção ao outro e ao mundo é
singular em cada um de nós.
E ao mesmo tempo ela parte sim das histórias pessoais, mas buscando
que essas histórias sejam “iscas para as histórias coletivas”
(RINALDI, 2006). Então, sem que isso seja uma contradição, no
muito singular pode existir um salto onde essa singularidade se
universaliza e uma história pessoal passa a ser a história de todos
nós.
Referências bibliográficas:
COMOLLI, J.L. Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão,
ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
HODGE, E. & WEISS, U. Bandoneon. Em que o tango pode ser bom para
tudo? Attar Editorial: ão Paulo, 1989.
RINALDI, M. O ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem.
Revista
Sala
Preta.
Número 06, 2006.
http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF06/SP06_016.pdf
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