Rodrigo
Severo
Pina
Bausch põe em cena mundos com efeitos estranhados, pois é preciso olhar o mundo
e a dança como um movimento às avessas, na contramão, apresentando obras em
estados de processualidades performativas que são decidas e interpretadas pela
ótica do espectador. Pois, "o olhar do espectador é forma e conteúdo da
dança-teatro de Bausch" (FERNANDES, 2000, p.100).
Os
processos criativos e as obras/espetáculos de Bausch são quebra-cabeças que
apresentam verdadeiros níveis de complexidade com camadas de
"teatralidades" humanas tanto para os atores dançarinos como para o
público.
A
dimensão política de Bausch talvez esteja presente na forma como o discurso
dramatúrgico das imagens são construídas/editadas, e de como as relações de
poder presentes na sociedade estão configuradas em diversas camadas de suas
obras/espetáculos, pondo em cena mundos estranhados e pontos de vista humanos
que tocam o espectador.
Nas
composições de Bausch, suas obras permanecem abertas e seus sentidos são sempre
construídos por quem vivência e participa da obra. As mensagens subliminares
presentes na obra de Bausch são muitas, e se apresentam por meio do universo
feminino expressivo em que questões de gêneros são postas em cena de forma
profundamente poética, desafiando a lógica das convenções da dança e do teatro,
são formas de violência cênica que parecem estabelecer um novo modo de relação
com o espectador. Em que “quase sem exceção, a violência é de homens para
mulheres. Não há nenhum registro de mudança de um movimento feminino para a
liberdade. Ela permanece totalmente impotente, sem qualquer recurso ou
perspectiva de libertação. [...]” (CALDEIRA, 2009, p.147.). São processos de
violência e opressão dos homens contra as mulheres (ou até mesmo subversão dos
gêneros) que se materializa em cena onde aparece a problemática de dominação
que se constitui por meio das tensões entre coro e protagonista, ou seja, das
frases de movimentos e das ações que o coro faz com o protagonista, como
acontece no espetáculo “Sagração da Primavera” (1975), em que aparece uma
atmosfera de medo, horror, aflição e dominação de sujeitos com uma
expressividade dramática que não é constituído por uma dimensão lógica, mas que
é problematizada pelas questões de gênero. Assim, “as cenas insólitas de Bausch
desafiam a lógica, mas é por meio dessa perversão da lógica, que a arte de
Bausch adquire uma força de expressividade única, que carrega os traços das lutas
do homem contemporâneo e sua contradição com o sistema da cultura” (CALDEIRA, 2009,
p. 147), em que quase sempre a violência do mais forte sobre o mais fraco
prevalece.
Pensando
nestas questões, o nosso procedimento de trabalho de hoje foi sobre
coro/protagonista e das relações que são estabelecidas entre gêneros. O
aquecimento inicial já explorava tal procedimento. Assim, o grupo foi divido em
dois subgrupos e em cada um desses, existia um alguém que executava uma ação,
outra pessoa que reagia e o grupo seguia a pessoa que reagia, e os papéis eram
trocados sucessivamente pelos participantes do jogo. Depois dessa etapa, cada
participante mostrou algumas ações de coro e protagonista que estão presente em
trabalhos de Pina Bausch, e iniciamos o jogo. Como a pergunta/questão de hoje
foi diretiva, nos deu mais possibilidades de mais relações corporais com o
outro. O jogo era de ação e reação: um
dança e o outro reage. Chegou um momento
do exercício que não sabíamos mais quem agia e quem reagia, pois aconteceu um
processo de sedução, um namoro, um tango a dois, formando-se imagens bem
profundas que tocavam na nossa humanidade.
A
relação com o outro nunca se esvaziava, pois era como um sistema sempre cíclico
em que um se alimenta e alimenta o outro sempre em relação, procurando modos de
se relacionar em níveis nada convencionais. Ações como lamber os pés um do
outro, seduzir através do olhar, tentar beliscar um ao outros com os pés, se
jogar nos braços do outro e deixar a pessoa do outro escorregar até cair no
chão, cantar parabéns com o corpo preso nos andaime com duas penas segurando o
peso do meu corpo e rir muito de si mesmo e dos outros, foram algumas das ações
que apareceram nesse jogo. Fizemos tantas ações que na hora de construir uma
síntese só foram editadas aquelas que foram mais significativas, aquelas que
foram construídas em duplas. Usar o espaço para compor nossa dança foi de
fundamental importância, pois dançamos com tais objetos, recriando novos
universos.
O
nosso estranhamento foi tão espontâneo que só depois do jogo foi que tivemos
consciência de que havíamos construído tal procedimento, o que me faz lembrar
as palavras de Bausch quando dizia a seus atores bailarinos “se você quer
entender, sinta” (Pina Bausch). Célia ao assumir o papel da Pina Bausch propôs uma
reorganização das ações que ficou síntese e muito grandiosa, pois havia um
sentido em sua condução, em sua organização coreográfica e a sequência das
duplas foram conservadas, possibilitando diversos níveis de leitura. As
relações de poder ficaram bem implícitas nas partituras criadas pelos atores
dançarinos.
O
interessante é como Pina Bausch discute o feminino em cena, o que já é uma
dimensão política de pensar as relações de poder que são estabelecidos pela
questão de gênero. Podemos falar de um universo microcosmo que constrói um
macrocosmo político do homem contemporâneo, podendo ser visto e discutido em
várias camadas de seus espetáculos. É um pessoal que também é coletivo, pois é,
sobretudo, humano. Nesta perspectiva, Fernandes (2000, p. 25) coloca que o
corpo do sujeito é ao mesmo tempo um corpo individual e um corpo coletivo “[…]
uma construção em nível psicofísico, constantemente permeada e controlada por
repetitivas normas de disciplina em meio às relações sociais de poder”. Diante
disso, nos processos criativos de Bausch nada é gratuito, mas ao contrário, é
uma pesquisa de movimento baseado em cultura e povos onde a forma de sua dança
assumem dimensões políticas. Assim, na composição final que fizemos em sala de
aula estava um quebra-cabeça que problematizava as relações e os sentimentos
humanos, transgredindo os limites entre dança e teatro, entre arte e vida.
Referências
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro:
repetição e Transformação. São Paulo: Hucitec, 2000.
CALDEIRA, Solange
Pimentel. O lamento da imperatriz: a
linguagem e o espaço em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário