sexta-feira, 12 de julho de 2013

Procedimentos de Coro e Protagonista na Dança-Teatro de Pina Bausch

Rodrigo Severo

Pina Bausch põe em cena mundos com efeitos estranhados, pois é preciso olhar o mundo e a dança como um movimento às avessas, na contramão, apresentando obras em estados de processualidades performativas que são decidas e interpretadas pela ótica do espectador. Pois, "o olhar do espectador é forma e conteúdo da dança-teatro de Bausch" (FERNANDES, 2000, p.100).
Os processos criativos e as obras/espetáculos de Bausch são quebra-cabeças que apresentam verdadeiros níveis de complexidade com camadas de "teatralidades" humanas tanto para os atores dançarinos como para o público.
A dimensão política de Bausch talvez esteja presente na forma como o discurso dramatúrgico das imagens são construídas/editadas, e de como as relações de poder presentes na sociedade estão configuradas em diversas camadas de suas obras/espetáculos, pondo em cena mundos estranhados e pontos de vista humanos que tocam o espectador.
Nas composições de Bausch, suas obras permanecem abertas e seus sentidos são sempre construídos por quem vivência e participa da obra. As mensagens subliminares presentes na obra de Bausch são muitas, e se apresentam por meio do universo feminino expressivo em que questões de gêneros são postas em cena de forma profundamente poética, desafiando a lógica das convenções da dança e do teatro, são formas de violência cênica que parecem estabelecer um novo modo de relação com o espectador. Em que “quase sem exceção, a violência é de homens para mulheres. Não há nenhum registro de mudança de um movimento feminino para a liberdade. Ela permanece totalmente impotente, sem qualquer recurso ou perspectiva de libertação. [...]” (CALDEIRA, 2009, p.147.). São processos de violência e opressão dos homens contra as mulheres (ou até mesmo subversão dos gêneros) que se materializa em cena onde aparece a problemática de dominação que se constitui por meio das tensões entre coro e protagonista, ou seja, das frases de movimentos e das ações que o coro faz com o protagonista, como acontece no espetáculo “Sagração da Primavera” (1975), em que aparece uma atmosfera de medo, horror, aflição e dominação de sujeitos com uma expressividade dramática que não é constituído por uma dimensão lógica, mas que é problematizada pelas questões de gênero. Assim, “as cenas insólitas de Bausch desafiam a lógica, mas é por meio dessa perversão da lógica, que a arte de Bausch adquire uma força de expressividade única, que carrega os traços das lutas do homem contemporâneo e sua contradição com o sistema da cultura” (CALDEIRA, 2009, p. 147), em que quase sempre a violência do mais forte sobre o mais fraco prevalece.
Pensando nestas questões, o nosso procedimento de trabalho de hoje foi sobre coro/protagonista e das relações que são estabelecidas entre gêneros. O aquecimento inicial já explorava tal procedimento. Assim, o grupo foi divido em dois subgrupos e em cada um desses, existia um alguém que executava uma ação, outra pessoa que reagia e o grupo seguia a pessoa que reagia, e os papéis eram trocados sucessivamente pelos participantes do jogo. Depois dessa etapa, cada participante mostrou algumas ações de coro e protagonista que estão presente em trabalhos de Pina Bausch, e iniciamos o jogo. Como a pergunta/questão de hoje foi diretiva, nos deu mais possibilidades de mais relações corporais com o outro.  O jogo era de ação e reação: um dança e o outro reage.  Chegou um momento do exercício que não sabíamos mais quem agia e quem reagia, pois aconteceu um processo de sedução, um namoro, um tango a dois, formando-se imagens bem profundas que tocavam na nossa humanidade.
A relação com o outro nunca se esvaziava, pois era como um sistema sempre cíclico em que um se alimenta e alimenta o outro sempre em relação, procurando modos de se relacionar em níveis nada convencionais. Ações como lamber os pés um do outro, seduzir através do olhar, tentar beliscar um ao outros com os pés, se jogar nos braços do outro e deixar a pessoa do outro escorregar até cair no chão, cantar parabéns com o corpo preso nos andaime com duas penas segurando o peso do meu corpo e rir muito de si mesmo e dos outros, foram algumas das ações que apareceram nesse jogo. Fizemos tantas ações que na hora de construir uma síntese só foram editadas aquelas que foram mais significativas, aquelas que foram construídas em duplas. Usar o espaço para compor nossa dança foi de fundamental importância, pois dançamos com tais objetos, recriando novos universos.
O nosso estranhamento foi tão espontâneo que só depois do jogo foi que tivemos consciência de que havíamos construído tal procedimento, o que me faz lembrar as palavras de Bausch quando dizia a seus atores bailarinos “se você quer entender, sinta” (Pina Bausch). Célia ao assumir o papel da Pina Bausch propôs uma reorganização das ações que ficou síntese e muito grandiosa, pois havia um sentido em sua condução, em sua organização coreográfica e a sequência das duplas foram conservadas, possibilitando diversos níveis de leitura. As relações de poder ficaram bem implícitas nas partituras criadas pelos atores dançarinos.  
O interessante é como Pina Bausch discute o feminino em cena, o que já é uma dimensão política de pensar as relações de poder que são estabelecidos pela questão de gênero. Podemos falar de um universo microcosmo que constrói um macrocosmo político do homem contemporâneo, podendo ser visto e discutido em várias camadas de seus espetáculos. É um pessoal que também é coletivo, pois é, sobretudo, humano. Nesta perspectiva, Fernandes (2000, p. 25) coloca que o corpo do sujeito é ao mesmo tempo um corpo individual e um corpo coletivo “[…] uma construção em nível psicofísico, constantemente permeada e controlada por repetitivas normas de disciplina em meio às relações sociais de poder”. Diante disso, nos processos criativos de Bausch nada é gratuito, mas ao contrário, é uma pesquisa de movimento baseado em cultura e povos onde a forma de sua dança assumem dimensões políticas. Assim, na composição final que fizemos em sala de aula estava um quebra-cabeça que problematizava as relações e os sentimentos humanos, transgredindo os limites entre dança e teatro, entre arte e vida.

Referências
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e Transformação. São Paulo: Hucitec, 2000.

CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da imperatriz: a linguagem e o espaço em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

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